Benlhevai

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Capítulo 7

Anos 20, a geração de Alberto Borges de Sousa



A primeira grande guerra já terminou. Estamos no fim da segunda década do século vinte, e ia nascendo por estes anos a segunda geração do século. Nascia Alberto Sousa, um cidadão diferente dos outros, parece que caiu aqui por engano, vindo doutra vida, duma sociedade culturalmente desenvolvida. Talvez devido a esse engano nasceu mesmo com problemas de saúde e manco. Como se não bastasse, os primeiros anos de vida complicaram ainda mais as condições já de si más com que tinha vindo ao mundo. Veio pois a ter uma vida atribulada.

Nunca foi à escola mas também não foi necessário. Nessa época nem a escola estaria à altura das suas capacidades. Aprendeu a ler e a escrever como ninguém. Foi um autodidacta, um poeta com ataques de loucura, como acontece com muitos dos poetas. Tornou-se um homem culto, lia, assinava jornais, publicava poemas n’ O Comércio do Porto e n’ A Gazeta do Sul. Não tolerava injustiças, não podia ver um pobre com fome.

Foi atacado também pela paixão, um amor impossível para a época. Viria a morrer em consequência dum acidente, vinha ele na camioneta do Amael e do Gastão. Deixaram-no em Mirandela, e daí alguém o levou de urgência para o Porto. Morreu em consequência desse acidente, em Junho de 1954. Veio para Benlhevai, acompanhado pelo seu pai que o trouxe para ser enterrado no cemitério da sua terra. Veio para onde, em vida, não foi tratado como merecia, para junto da sua gente que nunca o compreendeu. As suas cinzas repousam em paz na sua terra, no cemitério de Benlhevai, uma paz que nunca teve em vida, paz que sempre lhe foi negada. Em poucos ombros podia chorar as suas amarguras, em poucos colos podia repousar. Refugiava-se no seio da sua família, ultrapassava os momentos de maior revolta com o seu carinho e o seu amor. Os seus filhos eram os filhos da sua irmã e dos seus irmãos. Tinha também alguns amigos, poucos mas bons, de quem recebia o apoio de que tanto necessitava.

Era muitas vezes no cemitério que se refugiava, onde fazia exaltações aos céus, pedia protecção a Deus de quem tão pouco recebia. Era aí que declamava versos em honra de quem partia, cantava as sua virtudes e pedia compreensão para os seus erros.

Era também na capela da Senhora da Esperança que encontrava paz de espírito, e aí deixava o dinheiro que levasse com ele. Outras vezes distribuía-o na sua própria taberna, a quem ele achasse que fazia mais falta, aos pobres de pedir, a alguém que tivesse filhos para criar e poucos meios para o fazer.

Os momentos de solidão ocupava-os a ler e a escrever. Devorava livros, ia a aldeias vizinhas pedi-los emprestados a amigos, nomeadamente a Sampaio onde estava um Padre que gostava também ele de ler, escrever e de partilhar ideias com outras pessoas igualmente cultas, como era o Alberto Sousa. Este emprestava-lhe muitos livros, que depois serviam de temas de conversa e discussão entre os dois. Escrevia alguma prosa, mas sobretudo poesia. Quase tudo se perdeu na poeira e na ignorância do tempo. Que pena!

Só foram preservados alguns manuscritos seus que entregava aos destinatários da sua prosa ou versos. Outros foram encontrados por acaso, como aqueles donde foram retirados os versos que a seguir se transcrevem, e que foram encontrados nas ruínas da casa da sua prima Isaura Sousa, a quem foram dedicados. É actualmente a minha casa, e aí os guardo religiosamente, é como se ali estivesse o meu tio Alberto. Não o conheci, é certo, morreu antes de eu nascer, mas só morre quem não é lembrado, quem passa e não deixa vestígios da sua passagem. Todos ficam a viver para além da morte, até que mais ninguém se lembre do seu nome. Alguns, poucos, ganham o direito à imortalidade.

É mais que justa uma homenagem à sua memória. Aqui lha presto, e da maneira mais simples, com a publicação de um dos seus poemas que sobreviveram:

Com a devida vénia, com a imensa admiração e respeito que sinto por ti, ser humano inigualável, que nasceste fora do teu habitat e do teu tempo, irmão da minha Mãe, um Tio que não conheci, torno aqui público um dos teus poemas, dedicado à tua Mãe, minha Avó, Maria de Jesus Borges, esperando que não desaproves este meu gesto, Alberto Borges de Souza”:

À mãe

Inspirados pela minha prima,

Isaura dos Santos Sousa.


Se os teus lábios se fechassem

Sem que estes meus te beijassem,

Ausente, oh minha mãe querida,

Perdendo essa afeição,

Perdia o meu coração,

Deixava fugir a vida!


      Perdia a Deus, num clamor,

      Levando-me o teu Amor

      À campa funérea e triste.

      És Deus, tens força e escuta,

      Leva-me desta labuta,

      Mas não ma roubes, ouviste?


E se essa alma voar,

E lá no céu procurar

Se eu na terra passo bem,

Dizei-lhe que não recorde,

Que eu não me encontro, concorde,

Viver aqui sem ninguém!



      E que sem Ela não posso

      Viver aqui neste fosso

      De negrume e podridão;

      Só se num sonho voar,

      E for lá ao Céu levar

       Para sempre o coração!


Depois se puder viver

Sem esse carinho ter,

Sem mágoa, negrume e pena,

Já fiz testamento em vida,

Já lá tens, mãezinha querida,

Um coração de Açucena!


       Já fui pela terra inteira

      Exclamar, numa carreira,

      Alguém que não ouve, entende

      Esta máxima sublime,

      Não sei se perde ou redime:

      Um coração não se vende!


E tão depressa subisse

E lá no Céu te surgisse

Oh minha mãe, meu primor

Diante de mim levava

E já de cá te mandava

A santa palavra Amor!

Era o amor que o consumia. Amor à memória de sua mãe que cedo partira e o deixara ainda mais só; Amor a quem cedo o destinara, e que de forma tão simples o retribuía, amor amputado pelas desgraças da vida e pela escuridão da época; Amor aos deserdados da sorte, aos que nada tinham e também pouco ambicionavam; Amor aos poucos que amor lhe davam, alguns amigos e sempre a família, os seus irmãos Eduardo e Porfírio, a sua irmã Laura, os filhos destes, sangue do seu sangue, os filhos que a vida nunca lhe iria dar.

Era neste turbilhão de sentimentos que muitas vezes mergulhava, e todas as dúvidas o assaltavam então. Porquê? Sufocava assim em tanta opressão, tantos gritos que o levavam à loucura. Tinha que se libertar de todas estas amarras, de tudo o que era material, de tantas injustiças que já não suportava, do espaço demasiado pequeno que o rodeava e que o oprimia. Subia aos telhados, passava para lá do pequeno mundo dos vivos, ia-se lavar na imensidão do tempo, no cemitério onde não há distância temporal. Chegava-se a Deus, aí abraçava a sua Mãe.

Terminava esta viagem quando chegava a sua irmã Laura a pedir-lhe que regressasse. O turbilhão afastava-se, o temporal acalmava. Olhava-a de frente, fixamente, olhos nos olhos, e então chorava. Ninguém via, mas ele chorava, e chorando vinha-lhe à memória a infância: “Como seria bom sentir o aconchego do colo de minha Mãe”.

Regressava calado. Todas as palavras tinham ido com o temporal.

Morreu em Junho de 1954. Quem me dera tê-lo conhecido…

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