Benlhevai

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Capítulo II

França

É a altura certa para ir embora. Se não o faço agora, um dia chega aí o edital a chamar-me para a tropa e depois será bem mais difícil. Não quero embarcar para esta guerra que me querem impor. Há uns dias que ando a amadurecer a ideia, a arranjar forma de a comunicar aos meus pais:

- Vou pr’á França!…

Não lhes vai agradar a minha decisão, mas bem sei que não a vão estranhar. Por mais que pense que estou sozinho a fazer estes planos, a magicar sozinho, à noite, como tudo se irá a passar, acabo sempre por ver que há coisas que não é possível esconder aos nossos pais. Então a nossa mãe lê-nos na alma, sente o que nós sentimos, acompanha cada passo que damos, os nossos segredos são dela também. Não admira, foi ela que nos transportou no seu ventre ainda antes de sermos gente, comemos e respirámos pela sua boca, foi o bater do seu coração que nos alimentou as veias, chorámos as suas lágrimas, saltámos de contentes ao som do seu riso, não podemos ter segredos para ela.

Depois, também não é nada de inédito, todos os rapazes novos estão a partir, fogem da guerra e da fome, e outros, mais velhos, estão também a partir, estes fogem só da fome, que a guerra já não os quer. Os meus pais sabem que o seu filho irá partir também um dia. Vão tentar demover-me da ideia, mas vão fazê-lo sem grande convicção, mais por obrigação de o fazer.

- Meu filho, não somos ricos, mas tens onde trabalhar, nunca passaste fome…

- É em França que se ganha dinheiro, meu pai e minha mãe, e eu quero ganhar dinheiro para ter uma vida melhor do que esta.

Nem lhes falarei da guerra, não vai ser preciso. Bem sabem o que eu penso deste regime que oprime Portugal, dos que condenam todos os portugueses a uma vida sem esperança, que prendem a torto e a direito quem não pensa como eles. Falo o menos que posso nestes assuntos, dói-me a angústia que antevejo nos seus olhos, o pressentimento da dor que lhes vai varrer a alma, se um dia vier a “Guarda” para me levar sabe-se lá para onde. O silêncio ainda é o melhor remédio para estes sobressaltos. Estes são assuntos proibidos pelo regime, têm informadores por todo o lado e quando aparece alguém com ideias mais avançadas, que discute a política, a guerra, a tirania que oprime Portugal, não demora muito tempo a desaparecer. Há prisões cheias de gente, cujo único crime que cometeram foi pensar duma maneira diferente daquela que é imposta a este povo, outrora tão valente e agora tão submisso.

Esta minha partida, bem o sei, vai alterar por completo as suas vidas. Tenho dezoito anos e desde que saí da escola que tenho contribuído activamente para o sustento da família. O meu pai dirige a casa, as decisões importantes são dele, mas os bois foram-me entregues ainda antes de me terem nascido os primeiros pelos na cara. Demo-nos bem, fazemos um trio muito solicitado para trabalhar. Para além de fazer toda a lavoura da casa, vou ganhando umas jeiras a lavrar, acarrar pedra, mudar a malhadeira, levar a cortiça ao Cachão. Não me falta trabalho.

Tenho no entanto outras ambições, quero outra vida para os meus filhos, e essa maldita guerra que os nossos governantes arranjaram também contribui para esta minha vontade de partir. Não fosse isso e bem poderia esperar mais dois ou três anos até que o meu irmão Pedro me pudesse substituir. Tem 15 anos e ainda não está preparado para assumir as tarefas que me estão atribuídas. Os outros são ainda mais novos, o Luís, com 11, há pouco que largou os livros da escola primária, que ficaram nas mãos da mais nova, a Isabel, que vai fazer 9 para o mês que vem. É o mimo da casa, foi a menina tão desejada depois de três rapazes, não contando com o que morreu entre o Pedro e o Luís.

O remédio é o meu pai comprar um burrito e aparelhá-lo com o do tio Manuel, o vizinho que está a reduzir a lavoura como todos os outros. O seu filho já está em França, foi no início desta vaga de emigração, no princípio do ano passado, quando a guerra em Angola vinha já buscar navios cheios de gente nova, levada para a guerra para matar e morrer. Fugiu à guerra, tinham uma boa casa de lavoura mas já venderam os bois e o gado vai pelo mesmo caminho, o pastor também irá um dia para França. As notícias destes primeiros que partiram entusiasmam os que ainda cá estamos.

Em casa está assim a ser tudo tratado. Todos sabemos que é inevitável a partida, agimos como se estivesse tudo conversado e tratado, cada um faz a sua parte. Cá fora todos sabem da vida uns dos outros, todos fingem guardar segredo mas todos sabem que é em vão. Com os amigos, os que ainda estão por cá, nem vale a pena fingir, sabem que estes preparativos são iguaizinhos aos que estão a ser feitos nas suas casas. Com os amigos não há maneira de guardar segredos destes, esta onda está a mobilizar-nos a todos, ninguém fica de fora.

Nas outras terras está a acontecer o mesmo, a gente nova está a partir em debandada, todas as semanas os passadores arranjam grupos para pôr na estrada, seguindo rotas que vão sendo cada vez mais utilizadas por quem quer partir à procura duma vida melhor. Os passadores vão sendo conhecidos, levam gente e trazem notícias de facilidade de trabalho e muito dinheiro, os francos, que valem seis vezes mais que o nosso pobre escudo. Lá trabalha-se, mas pagam bem!



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