Benlhevai

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Capítulo XVIII

Montes Bascos


Não tinha passado ainda meia hora, mal nos tínhamos sentado, metido conversa com o vizinho espanhol, mais por gestos do que com palavras, e estas ditas baixinho, para seguir os conselhos do Passador, e já o motorista fazia uns gestos com a mão. A mensagem rapidamente passou por todos nós, íamos passar pela Guardia Civil. Como estava combinado, os espanhóis começaram a cantar e todos os portugueses abrimos a boca fingindo que também estávamos a cantar. Queríamos assim que os guardas pensassem que se tratava duma excursão de alegres espanhóis, a caminho duma festa qualquer.

A carreira começou a travar até que parou. Abriu-se a porta, apareceu a cabeça dum guarda, espreitou, subiu os degraus e esticou o pescoço para tentar ver todos os bancos ao mesmo tempo. Caiu sobre nós um silêncio aterrador, calou as bocas, gelou os pés, subiu pernas acima, invadiu o corpo todo. O guarda trocou umas palavras com o motorista, olhou novamente para todos nós e saiu.

O silêncio manteve-se, o sangue continuava gelado, não dava sinal de vida. A carreira recomeçou a marcha, aos poucos o corpo começava a reagir, o perigo tinha passado, mas já ninguém cantou.

Umas curvas à frente a carreira parou num larguinho ao lado da estrada, eram muitos os pedidos para ir "verter águas". Também fui, senti então que tinha os pés completamente gelados e que me doíam, metidos nos sapatos novos que me tinha feito o Albérico de Santa Comba. Sola abençoada, forte; Sola desgraçada, que não dava sinais de amaciar.

Andámos uns quilómetros em silêncio, todos os portugueses a pensar que estivemos quase a ser apanhados pela Guardia Civil, os espanhóis a pensar que se tinham livrado de problemas com as autoridades do seu país.

A carreira ia ganhando velocidade nas descidas, ia-se queixando nas subidas, nas curvas quase que nos tombava uns para cima dos outros. O motorista também tinha visto o perigo, se calhar mais do que nós, agora vingava-se, tentava afastar-se o mais que podia, o mais depressa que o motor da carreira aguentava.

O tempo foi passando, os quilómetros também. Ao longe íamos vendo mais montanhas, pelos vistos eram estas que íamos passar a pé. O Passador tinha-nos avisado que iríamos passar por uma região em que o controle da Guardia Civil era mais apertado, por estes lados havia muitos problemas por resolver entre o governo espanhol e os bascos. O País Basco começa nestas montanhas, que por isso mesmo têm o nome de Montes Bascos, e termina já bem dentro de França. Há muitos anos que luta pela independência, se calhar começou na mesma altura que Portugal, só que nós conseguimo-la já lá vão mais de oitocentos anos, e os bascos ainda não. O estado espanhol tem assim uma vigilância mais apertada na entrada desta região e para não sermos apanhados, o remédio é passar estas montanhas a pé. Quem me dera cá os sapatos velhos que deixei em Benlhevai

Estão tão longe esses sapatos, está tão longe Benlhevai. Já foram percorridos centenas de quilómetros, já passaram muitas horas, parece que o mesmo número de dias. Sinto-me longe, parecem gastas as imagens de tudo o que deixei. Aperta-se-me o peito, sinto a garganta seca. Os olhos são inundados por ondas onde vejo a despedida, o rosto triste de minha mãe, as lágrimas de Carolina. O que se passará na minha terra, como serão os dias que já não vejo?

O corpo vai-se encostando ao banco da carreira, o seu movimento vai-me embalando, sinto com toda a nitidez a entrada no sono, envolvo-me num turbilhão de sonhos que me levam pelos montes e vales de Benlhevai. Volto ao Salgueiro, voo Chãs acima, subo ao alto da Cabeça Gorda e deixo-me guiar pelo vento. Vagueio por sobre os campos verdes onde o pão começa a nascer, passo pelo meio de todas as cores de que se vestem nesta altura os castanheiros - o castanho, o vermelho cor de vinho, o amarelo ocre, algum verde que foi ficando. As vinhas têm as mesmas roupagens, mas estão despidas de uvas, o mais que pode haver é um galelo ou outro, sarrabulho que resistiu a muita gente que por ali passou. Vejo as casas mas não consigo chegar lá. Quase que toco nos telhados, estão ali mesmo por baixo dos meus pés, com um esticão era capaz de desviar a cortiça das boeiras e ver no lar quem estivesse lá sentado no escano, ouvir a conversa, ver o que comiam na preguiça. Passo por cima da fonte, quem me dera estar ali, à espera de Carolina, vê-la subir a rua, envolvê-la num abraço que nunca mais nos deixasse separar.

É este abraço, sonhado mas tão real, que me embala nesta viagem para França, no meio desta gente que, como eu, se afasta de abraços e beijos de despedida, perdidos em memórias longínquas duma vida deixada para trás.

Acordo, espreguiço-me no sonho. Aos poucos vou-me afastando dele, as imagens vão-se apagando e lentamente regresso à realidade. Concentro-me então naquilo que procuro – trabalho e dinheiro, para um dia regressar a Portugal, a Benlhevai, ao Terreiro, à fonte, à terra fumegante das manhãs de Outubro, a uma casa que seja minha, nossa, onde aprendam a andar os filhos que hão-de nascer deste amor que me acompanha, que me liga a Carolina, que me dá todas as forças para vencer esta caminhada.

Sem dar por ela regresso ao sonho, agora acordado, com o olhar perdido nos montes que ficam para trás, além ao longe, para lá dos vidros embaciados da carreira.

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