Benlhevai

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Capítulo X
A última sementeira


A sementeira está quase feita, falta só o Noval, pouco mais de uma jeira de terra. Ontem lavrei quase tudo, só ficou um canto lá no cimo. Hoje, sábado, acabo de o lavrar, espalho o pão e agrado. Manhã cedo, que agora os dias já são pequenos e têm que se aproveitar bem, salto da tarimba e vou junguir os bois. Está o céu limpo e na terra tudo branquinho, caiu uma daquelas geadas valentes. É fruto da época, tudo faz falta. É com estas geadas que morre a bicharada, insectos que são nocivos para a agricultura, para as árvores. Não morrem todos, mal feito, lá para a Primavera, quando o frio do Inverno se estiver a despedir, é vê-los encher o ar, saem de todo o lado, debaixo duma pedra onde se abrigaram do frio, debaixo da casca das árvores, sei lá de onde mais. Estas geadas também fazem bem às couves, ficam mais tenrinhas, mais doces. Ponho no carro a charrua, a grade e a saca do pão, nem é preciso enchê-la, que a terra não leva mais de quatro rasões de trigo. Ponho também um molho de feno para os bois, a merenda para mim, um cibo de pão a mais para o Farrusco e toca a andar. Parecia tarde e mal, e no entanto ainda a noite se está a despedir. Quando saio de casa ainda mal se vê, só ao chegar às leiras, uma boa meia hora depois de sair do povo, é que o dia se instala definitivamente. O branco da geada ia cortando o negro da noite, agora começa a brilhar com os primeiros raios de sol que sinto bater-me nas costas, hoje o dia é dele, nem uma nuvem se vê no céu. Olho para trás, o céu atrás da serra de Bornes está pintado de vermelho e a silhueta da serra parece estar a ser recortada pelo fogo que envolve o sol. Começou lá no alto, onde estão as antenas do rádio e veio a rasgar a terra por ali a baixo, na direcção de Sambade. Continuou para Alfândega, descendo depois até ao imenso vale da Vilariça. Passou para este lado do vale e de repente aí está ele ao pé de mim, a alumiar-me o caminho, a aquecer-me o corpo e a alma. Bem preciso, o corpo não tem medo ao frio, nunca teve, já enfrentei nevões, cincenadas de meter medo, onde o frio intenso se mistura com a beleza deslumbrante do gelo a cobrir toda a natureza e a estender-se em lâminas quando encontra os ramos das giestas e dos pinheiros, um branco intenso que nos obriga a fechar os olhos e abri-los lentamente para podermos apreciar esse espectáculo em todo o seu esplendor. Já trabalhei com o ferro de bacelar a gelar-me as mãos, com a vara da azeitona a trazer-me a água da chuva pelos braços abaixo, já fiquei com o cabelo branco da geada quando a ida para o trabalho acontecia demasiado cedo, ou a vinda demasiado tarde, em dias que nasciam ou se despediam com o céu limpo de nuvens, mostrando todas as estrelas que o olhar pode receber. Não, não é este frio que me assusta, é a alma que treme, que precisa de ser aquecida pelo sol. É a este calor que tenho que me habituar, tão longe que vou estar do outro, do calor humano da presença tranquila do meu pai, da voz quente da minha mãe, do olhar doce de Carolina.


Chego ao Noval, ponho os bois à charrua, começo o lento caminhar, rego à frente, rego atrás, a lavoura avança sem se dar por isso. Nestes dias há tempo para tudo, para pensar, para sentir a natureza em toda a sua plenitude, a manhã silenciosa, o lento acordar da terra, o cheiro único que vem das suas entranhas, o movimento lento dos ramos das árvores, o salto brusco duma lebre que salta da cama quando o Farrusco lhe chega perto, o esvoaçar da passarada que vem atrás da terra fresca e do banquete que fica ali à sua disposição, a bicharada que a charrua traz à superfície. Quando os pensamentos ficam em ordem há tempo para cantar. O Zé Criado, ali ao lado, no Carvão, já se antecipou, canta uma moda que daqui não é perceptível. É altura de eu puxar também pela voz, aqui vai o “Gerinaldo”:

- Gerinaldo, Gerinaldo,
Criado d’El Rei mais querido,
Quem pudera, Gerinaldo,
Passar a noite contigo.

- Não mangue, minha senhora,
Não esteja a mangar comigo.
- Eu não mango, Gerinaldo
Que eu bem deveras to digo!

- Diga-me, minha senhora
A que horas vou ao postigo?
- Das onze p’rá meia noite
Quando o pai estiver dormido.

Ainda não eram as onze,
Vai Gerinaldo ao postigo!
- Oh, quem bate à minha porta?
Oh quem bate ao meu postigo?

- É Gerinaldo, senhora,
Que não falta ao prometido. -
Deitaram-se então na cama
Como mulher e marido.

El Rei teve então um sonho,
Um sonho descolorido.
Que tinham roubado a filha
Quando estava no postigo.

Levantou-se El Rei da cama
E foi ver o acontecido.
Encontrou ambos dormindo,
Como mulher e marido.

- Pr’a matar o Gerinaldo,
Criei-o de pequenino;
Não vou matar Gerinaldo,
Não merece tal destino.

- Para matar a princesa,
Fica o reinado perdido.
Deixo aqui o meu punhal
Entre vós os dois metido.

- Acorda, acorda, Gerinaldo,
Que meu pai é aqui vindo!
Ou me matas, Gerinaldo,
Ou tens que fugir comigo!

Não a vou matar, senhora,
Nem hei-de fugir consigo,
Vou entregar-me a seu pai,
Para me dar o castigo.

- Donde vens tu, Gerinaldo,
Que vens tão descolorido?
- Fui dar água ao seu cavalo,
Que ainda não tinha bebido.

- Não me mintas, Gerinaldo,
Nunca foste de mentiras!
- Venho de além do rio,
De regar o cebolinho.

- Não me mintas, Gerinaldo,
Nunca foste de mentiras!
- Venho de caçar a rola,
Que ainda estava no seu ninho.

- A rola que tu caçaste,
Criei-a eu com o meu trigo.
Abençoo-vos aos dois
Como mulher e marido.
 




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