Benlhevai

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Capítulo VIII
A despedida

Ainda Outubro não tinha acabado, andávamos com a sementeira e uma bela tarde, o Ricardo chega-se ao pé de mim e meio em segredo dispara a notícia que eu tanto esperava e receava:

- Mê, é p’rá semana. Solteiros, ides tu e o Carlos, e casados vão o Chico “d’Eirinha”, o Luís “Pedreiro” e o Manuel “da Rosa”. Às dez da noite de segunda-feira encontrais-vos no cruzamento da Rodeira com o caminho que vai para a Maria Belida. Já estais fora do povo e aí ninguém vos vê. Dali para a frente ides todos juntos até às Chãs, e mais abaixo, ao chegar perto do ribeiro donde já se vê a estrada, ides-vos afastando uns dos outros, que o Passador não vos quer ver chegar em montão. Tu vais ser o último a chegar à ponte do Salgueiro e vais estar lá às onze em ponto, que é quando o primeiro carro do Passador lá vai chegar. Mê, já sabes, bico calado, sou eu que vou dar este mesmo recado aos outros.

Senti baterem-me no peito todas as palavras. Saíam da boca do Ricardo como pedras, vinham todas direitinhas ao coração que batia descompassadamente, aflito, indefeso perante o turbilhão de palavras que o Ricardo disparava. Os tímpanos doíam-me, os olhos cobriram-se de nevoeiro, a boca ficou seca, terrivelmente seca. Se quisesse dizer uma palavra que fosse, não o conseguia. Nem tentei falar, fiquei assim parado, silencioso, sem saber o que fazer. De tanto pensada, esta viagem transformou-se numa aventura fantasmagórica, irreal. E que faço agora? E os meus pais? E os meus irmãos? E Carolina? Sinto que estou a fugir de quem mais gosto e no entanto não posso voltar atrás.

Vou para casa, dou a notícia à minha mãe. O meu pai não está, foi ao Prado buscar uma saca de maçãs para os bois, vai sabê-lo quando chegar. Os meus irmãos andam por aí e a minha irmã está na escola, vão sabê-lo à noite, depois da ceia, quando tratarmos dos pormenores da partida, ao serão.

À Carolina não sei como lho dizer, já sabe que vou por um destes dias, mas parece-me que ainda está como eu, sem ter percebido o verdadeiro alcance da partida, e dizer-lhe “-é p’rá semana”, é o desfazer dessa incerteza, é um golpe que se vai abrir sem saber como irá curar. Ambos temos tentado fingir que nada vai acontecer, que foi apenas uma brincadeira, que os dias vão correr naturalmente e que um dia vamos partilhar uma casa, uma vida. É esse o nosso sonho e ainda não nos quisemos aperceber que não vai ser dentro desta vida calma de Benlhevai. É uma realidade demasiado dura, vamos quebrar uma rotina que se vinha repetindo de geração em geração. Foi aqui em Benlhevai que os nossos pais casaram e tiveram filhos, já tinha sido assim com os nossos avôs, com os nossos bisavôs, sempre assim foi desde que há memória. É como se estivesse a cometer uma traição, deixar esta paz e ir pelo mundo fora à procura do desconhecido.

Bem sei que esse mundo dos meus antepassados já não existe, a guerra veio bater-nos à porta, trazida por quem governa o nosso país. É essa a realidade! Quem me dera que o futuro estivesse aqui na minha terra, nesta paz de que tanto gosto, mas não, se aqui ficar é para África que me levam e nos meus braços habituados a trabalhar a terra, vão colocar uma arma, com essa arma vou matar seres humanos que não conheço, gente que está a defender a sua terra. Nos braços deles estão também armas, que vão disparar na direcção dos seus inimigos, que somos nós, seres humanos que eles também não conhecem.
É esse destino que eu recuso, essa guerra e todas as guerras que são inventadas pelos poderosos, por quem governa este país e os outros. Não me seduz o dinheiro que dizem que se ganha por França, não me atrai o desconhecido. Queria ficar aqui, perto dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus amigos. Queria ficar aqui perto, bem perto de Carolina, viver o amor tranquilo que nos une, construir uma família nesta paz que todos os dias o sol espalha sobre a minha terra, Benlhevai.

Parto contrariado, ao sair da minha terra é para trás que vou olhar.

A minha mãe chorou. Agarrou-se a mim, silenciosamente durante uns instantes, depois começou a soluçar, como eu, até que chorámos os dois. Com a minha mãe eu podia chorar à vontade, ninguém nos via, éramos mãe e filho, não importava a idade de cada um. Eu continuava a ser criança, ela era a minha mãe, era como se ainda me estivesse a embalar no colo, o seu calor a invadir-me de amor, a sua voz a levar-me para o mundo dos sonhos:

Dorme, dorme, meu menino,

Qua a mãezinha logo vem,
Foi lavar os cueirinhos
À fontinha de Belém.

Nossa Senhora os lavava,
São José os estendia,
O Menino Jesus chorava
Com o frio que fazia.

Chorámos assim em silêncio, até que tudo ficou mais claro, a dor da partida foi-se esbatendo e transformou-se em coragem, a incerteza deu lugar à determinação. Quando estiver perdido lá para terras de França, vou sentir a falta do colo da minha mãe.

O meu irmão Pedro, quando ouviu a notícia, deu-me um abraço, senti-o soluçar. Este abraço era a passagem de testemunho, ia ser ele o mais velho dos filhos mas essa responsabilidade que eu lhe estava a passar não impediu um choro que tentou em vão controlar. O Luís chorou sem saber bem porquê e a Isabel só chorou porque viu chorar os irmãos. Abençoada a inocência das crianças.

O meu pai fingiu que não lhe doeu a notícia. Um pai é assim, serve para nos incutir confiança, transmite-nos serenidade. Eu correspondi e falámos de questões práticas – o dinheiro para a viagem, conselhos para não me perder no longo caminho que tinha pela frente. É assim mesmo, meu pai, sinto-me dono do meu futuro, não há nada que me possa impedir de atingir os meus objectivos. Como é bom ter uns pais assim…




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